Indignação. É o que melhor define o sentimento experimentado por mim, ao ler os artigos intitulados “Manifestações de Fundo Umbandista no Meio Espírita”(art. nº 38/2008) e “Misticismos que Despencam a Credibilidade do Projeto Espírita no Brasil” (art. nº 62/2008), ambos publicados no site JORGEHESSEN.NET – Artigos Espíritas.
O primeiro componente dessa indignação é a náusea que sempre experimentei ao me deparar com aqueles que pretendem emitir juízos de valor sobre coisas que desconhecem, ou que, pelo menos, não conhecem em profundidade suficiente para lastrear uma análise crítica. Tal atitude, conhecida popularmente por leviandade, tem sido por muito tempo a fonte de aplauso e reconhecimento público a tantos e quantos falastrões de plantão, aliciadores das consciências ingênuas dos incautos, por via de um discurso tão fluido, quanto vazio.
É sob esse prisma que, em princípio, interpreto as considerações desairosas tecidas sobre os espíritos de Pretos Velhos, no segundo artigo sob comento. Ali, com o apoio de uma citação de Divaldo Franco, a figura do Preto Velho é tratada como um espírito ignorante de um ex-escravo desencarnado que preserva uma atitude atávica, disposto a executar qualquer tipo de tarefa, no afã de servir ao “senhor” branco.
Uma tal visão demonstra, de pronto, um total desconhecimento do que sejam os Pretos Velhos, de sua missão e função nos cânones da Corrente Astral de Umbanda. Na verdade, demonstra uma visão parcial e estereotipada do fenômeno; a visão de quem ouviu falar e tirou conclusões apressadas, com base somente na forma, sem adentrar o conteúdo. De resto, aponta, aí sim, para uma profunda ignorância sobre o que realmente seja a Umbanda.
Vale, então, prestar alguns esclarecimentos, menos por desagravo aos Pretos Velhos – que são bem maiores que isso –, que para ilustrar de forma consequente e honesta a cultura religiosa desses senhores que se auto atribuem a tarefa de “retirar a ignorância”.
O homem possui uma dimensão simbólica inquestionável que se encontra na base de seu mecanismo de compreensão da estrutura do mundo e de seu papel dentro dessa estrutura. O simbolismo permite que se condense em uma simples imagem toda uma carga de conteúdo que, por vezes, precisaria de tratados inteiros para serem devidamente verbalizados. A Espiritualidade Superior, conhecedora dessa perspectiva semiótica, sempre se serviu e ainda faz uso disso para trazer ensinamentos úteis. É por isso que o universo onírico é permeado de imagens aparentemente absurdas, mas que, devidamente interpretadas e contextualizadas, revelam verdades inconscientes. Foi também por isso que Jesus se serviu tanto das parábolas, algumas das quais soam ingênuas e até mesmo absurdas, se tomadas ao pé da letra, mas revelam sua grandiosidade, quando analisadas à luz do simbolismo.
Também é graças a esse universo simbólico que é possível ao homem guardar nas camadas mais profundas do inconsciente imagens virtuais das aquisições da humanidade; aquilo que Carl Jung denominou de inconsciente coletivo, comum a toda a espécie e que iguala e, por assim dizer, irmana todos os homens pelas aquisições culturais ancestrais.
Assim, para ficar na terminologia junguiana, o Preto Velho é, na verdade, um arquétipo correspondente ao “velho sábio” presente em todas as civilizações, em todas as épocas.
Sucede que a Umbanda – que, para desagrado das mentes iluminadas dos “doutores do Espiritismo”, não é um culto afro, como se costuma acreditar – tem sua base doutrinária assentada sobre o tripé humildade-simplicidade-pureza, com representação arquetípica respectivamente nas figuras do Preto Velho, do Caboclo e da Criança. Nesse contexto, o arquétipo Preto Velho – símbolo de humildade – transcende o “velho sábio”, na medida em que, além de representar a sabedoria oriunda da vivência, representa a resignação ante as provas e a redenção pela dor, princípios pregados pelo Mestre Jesus, por palavras e pelo exemplo.
Essa abnegada e iluminada legião agrega centenas de milhares de espíritos das mais diferentes origens (inclusive muitos que não tiveram encarnação como tal), irmanados pela vontade única de servir na seara do Mestre, de forma anônima e impessoal, praticando a caridade como a preconizou Jesus e não como “os hipócritas nas sinagogas”.
Provavelmente alguns espíritas defensores da “pulcritude” da doutrina se sentiriam desolados, se pudessem perceber que muitos dos espíritos que eles rotulam de “venerandos”, ao deixarem as casas kardecistas, dirigem-se serenos às tendas e aos terreiros de Umbanda, para ali envergarem por algumas horas a pulcra e digna vestimenta de Preto Velho. É que, a despeito do que pensam e desejam os puristas, Deus não criou a luz apenas para suas ribaltas pessoais.
Que os espíritos não tem cor pode ser um fato, mas teriam ainda menos uma profissão. Todavia, tem sim suas identidades relacionadas aos seus adiantamentos, às vidas que os tornaram o que são na ascensão evolutiva. Afinal de contas, o Pai Eterno garantiu-lhes as encarnações para seu progresso e lhes permite que façam uso desta bagagem adquirida, de forma inteligente, responsável e amorosa. Não fosse isso, atavismos também seriam as referências ao Rabi da Galileia, ao querido doutor Bezerra de Meneses, doutor Michel e tantos outros ilustres Doutores que assistem em diversas Casas de trabalho evangélico.
Fica patente que o incômodo destes pseudo-sábios não é os bons espíritos darem referências de si. O que mexe com os corações enodoados pela empáfia, tampouco é se o trabalho é caritativo, Evangélico e Cristão – mesmo por que eles não se dão o trabalho de investigar com a cientificidade própria que o Kardecismo propõe –. O que lhes tira o sono é a possibilidade de que alguém que se apresente como de origem social inferior possa externar elevados padrões morais.
Indubitavelmente, milhões de brasileiros com diferentes níveis de formação, inclusive os de mentes simples, compreendem de forma intuitiva e natural a missão e a mensagem dos Pretos Velhos, por isso, enxergar nessas entidades espíritos ignorantes e atávicos só pode decorrer – ressalvada a hipótese de má-fé – de uma profunda miopia intelectual.
O segundo componente de minha indignação é a constatação da existência de uma ortodoxia que, embora não estéril, produz frutos impregnados de um veneno letal que já vitimou milhões ao longo da história: a intolerância.
Causa-me repulsa ainda maior o fato de que essa intolerância traveste-se da falsa magnanimidade dos que simulam o respeito a todas as correntes religiosas, mas tacham impiedosamente de ignorantes aqueles que não exercitam seu purismo doutrinário e suavizam a agressão, aconselhando a interpretação de “ignorância” por sua acepção mais “agradável”. Curiosamente não conseguem perceber, entre as acepções que eles mesmos sugerem, algumas que se lhes aplicariam com absoluta propriedade, como soberba, presunção e pretensão.
Estas características, filhas gêmeas do orgulho e da vaidade, encontram-se entre os mais encarniçados inimigos das verdades evangélicas que os “puristas” afirmam defender, e estão certamente muito mais identificadas com o joio que o Cristo anteviu em sua seara, do que a simplicidade de formas, que eles tanto condenam, mas que o Mestre pregou e praticou como ninguém mais.
Sempre considerei que todo discurso muito eloquente na defesa de princípios formais esconde uma absoluta falta de capacidade de reflexão. Se assim não fosse, aqueles que criticam o linguajar simbólico dos Pretos Velhos, por julgarem-no extemporâneo, voltariam primeiramente os olhos sobre o vocabulário típico dos consagrados oradores espíritas e enxergariam muito mais extemporaneidade no rococó dos termos rebuscados e inúteis, camuflando, muitas vezes, sob o excesso de forma uma lamentável escassez de conteúdo, ou, na pior das hipóteses, adornando o argumento sofismático daqueles que alardeiam caridade e humildade, mas exsudam orgulho, arrogância e vaidade.
O que me alegra é perceber que milhões de almas necessitadas vem recebendo alento e motivação nos terreiros espalhados pelo país, enquanto os doutores do templo, fundamentalistas kardekiitas, se esforçam em elitizar o Espiritismo e academizar o Evangelho. Que continuem com sua profissão de fé: enquanto eles verborragem, a caravana da Umbanda passa.
Finalmente, o terceiro elemento de minha indignação vem de uma passagem do segundo artigo em comento, onde o articulista sugere que, ante a manifestação de um Preto Velho em uma casa espírita, o doutrinador deve se dirigir à entidade – tratando-a como ignorante e necessitada – e dizer-lhe que ele não deve apresentar-se como Preto Velho, que ele pode reassumir a forma de outras encarnações.
A sugestão de tal performance está justificada pela necessidade de o espírito abandonar sua condição de escravo, mas essa justificativa maquia a verdadeira intenção: a de o espírito abandonar sua condição de negro que é a que de fato incomoda.
Hipócritas! Tivessem um mínimo de capacidade de reflexão, aliada a um mínimo de conhecimento histórico e se lembrariam de que Jesus nasceu no seio de uma nação subjugada e sua condição social ante o Império Romano era pouco diferente da de um escravo, mas eles não tem qualquer problema quanto a isso, porque os registros históricos dão conta de um Jesus branco, ou quando muito moreno.
Na senda do que afirmo, e para que não pairem dúvidas, vale transcrever parte do segundo artigo onde esses “arautos da divina luz” deixam transparecer em suas próprias palavras o teor do “cristianismo” que disseminam:
“É urgente romper a malha dessa teia do misticismo inoportuno que arranha a imagem do Projeto Espírita no Brasil. O Centro Espírita não é reduto de escravos (senzala) em que espíritos ataviados utilizam os "cavalos” e indicam, aos choraminguentos e eternos pedintes, o caminho das facilidades materiais na volúpia de suas próprias conveniências pessoais.” (grifo deste autor)
Só não consigo precisar se o caráter filosófico (se é que existe) de uma tal visão remonta a Kardec ou a Nietzche.
Curiosa a preocupação demonstrada por eles quanto a arranhões à imagem do projeto espírita no Brasil. A meu ver essa preocupação poderia ser mais bem demonstrada sob as indagações de quanta dor o projeto espírita tem sido capaz de mitigar, quanto alento o projeto espírita tem sido capaz de distribuir, quanta fraternidade o projeto espírita tem sido capaz de inspirar, quanto amor o projeto espírita tem sido capaz de despertar, quanta paz o projeto espírita tem sido capaz de promover.
De resto e de minha parte – umbandista que sou – reconheço em todos os espíritas sinceros, companheiros de jornada na construção de um mundo mais humano e, por isso, tanto quanto me esforço na construção do projeto umbandista, torço sinceramente pelo sucesso do verdadeiro Projeto Espírita no Brasil e no mundo; pelo sucesso de um Espiritismo plural, multiétnico, multirracial, multicultural, e singularmente Cristão.
Quanto à preocupação dos kardekiitas com o fracasso no Brasil de seu projeto purista, eugênico e asséptico, temo tratar-se, essa sim, de uma preocupação absolutamente extemporânea: o tipo de projeto que eles defendem já fracassou como um todo no fim do século XVIII juntamente com a Inquisição e em 1945 na Alemanha.
Que o referencial do Mestre Jesus possa finalmente servir de Norte a esses irmãos e que eles possam amadurecer em suas responsabilidades fraternas.
Assinam a presente:
Jorge Caetano Júnior
Walteno Batista Santos.
HESSEN, Jorge. Artigos espíritas Jorge Hessen. Disponível em: http://jorgehessenestudandoespiritismo.blogspot.com.br/.
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