Já há muito tempo não publico um artigo de cunho religioso. Alguns leitores conhecidos até já reclamaram por isso, mas admito que religião não é exatamente o tema que mais me motive, a despeito de minha atual condição de dirigente de uma comunidade religiosa (quem diria, não é?).
Hoje, contudo, quando
retornava para casa após buscar meu filho na escola, deparei-me com um carro à
minha frente ostentando um adesivo com uma frase que vem se difundindo muito e
que já encontra admiradores mesmo entre os esclarecidos membros da comunidade
que dirijo.
A frase a que me
refiro, que não sei de onde surgiu, mas que aparece cada vez mais estampada em
camisetas, adesivos e até mesmo “outdoors” assevera:
“Deus
não escolhe os capacitados, capacita os escolhidos.”
Típica frase de efeito
em razão da inversão sintático-semântica com repercussão estilística, guarda em
si profundo conteúdo salvacionista e não deve ser levada a sério por qualquer
um que se pretenda adepto de uma religião evolucionista.
A questão a se colocar
é: há escolhidos? Particularmente eu entendo que não, mas em admitindo que os
haja, emerge imediatamente outra questão que comporta duas conclusões inevitáveis.
A questão é: há critérios na escolha? Não havendo, somos obrigados a admitir
que Deus pode fazer o que bem lhe aprouver, estando em condições de escolher
aleatoriamente, mas isso lhe retiraria um de seus principais atributos: a
justiça.
Por outro lado, se há
critérios, e eles não incidem sobre uma prévia capacitação, restaria saber
sobre que exatamente eles incidem. Novamente deve-se assinalar que Deus pode
fazer o que bem lhe aprouver, inclusive adotar critérios ilógicos, mas isso lhe
retiraria outro de seus principais atributos: a sabedoria.
Ademais, a existência
de critérios, numa perspectiva lógica, elimina a ideia de escolha stricto sensu, pois a escolha mediante
critérios não é uma escolha, é uma seleção. Isso nos conduz a um outro raciocínio:
se Deus seleciona, ele o faz em relação àqueles que, de alguma forma possuem
algum tipo de característica que os tornem aptos à seleção. Sendo essa
característica inata, ela proviria do próprio Deus e, nesse caso, teríamos
muito mais uma predestinação que uma seleção propriamente dita, o que mais uma
vez é atentatório à ideia de justiça que se deve atribuir a Deus.
Se, por outro lado, a
característica que conduz à seleção não é inata, ela pressupõe que tenha havido
da parte dos selecionáveis algum tipo de esforço em sua aquisição. Isso pode
ser entendido como uma forma de capacitação, o que invalida a assertiva como um
todo.
Basta, portanto, um
pouco de raciocínio lógico, para se jogar por terra o efeito da frase,
tornando-a mero artigo de retórica. E ainda não se criou qualquer artigo de
retórica capaz de ofuscar o brilho lógico da única verdade condizente com a
justiça e a sabedoria divinas: somos todos criados simples e ignorantes.
Através de nosso esforço pessoal vamos gradativamente nos capacitando e nos
depurando em ciclos de consciência viva, ora na matéria, ora no mundo
espiritual, num processo de ascensão infinita.
Deus não escolhe nem
capacita; Ele provê o necessário para que nos capacitemos e nos ampara a todos,
indistintamente, nos momentos de hesitação e de estagnação. Aqueles que semeiam
mentiras retóricas de caráter messiânico, na maior parte das vezes querem
atribuir a si mesmos a condição de escolhidos, a fim de terem ascendência e
domínio sobre os incautos que lhes dão ouvido.
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