Lendo o novo livro de um velho amigo (1), lembrei-me de um fato histórico que sempre despertou minha admiração e meu respeito, mas que foi, ao longo do tempo, sendo propositalmente esquecido pela história oficial, principalmente durante os anos de chumbo da ditadura, e que só chegou até nós, devido ao esforço muitas vezes anônimo de historiadores de vanguarda, comprometidos com a verdade, a despeito da repressão, e também da coragem de alguns artistas que eternizam o episódio em suas obras.
O fato a que me refiro é a Revolta da Chibata, página emocionante de nossa vida enquanto nação e que somente há bem pouco tempo passou a constar dos livros didáticos de História, assim mesmo, recebendo uma menção secundária, como se fosse um fato de menor importância, quando é, na verdade, um marco de coragem e heroísmo.
Muito poucos sabem disso, mas o Brasil já foi uma potência naval. Em 1910 estava em andamento um plano de reestruturação da frota que, ao final, transformaria o Brasil num dos países mais poderosos do mundo no quesito Marinha de Guerra.
Contrastando com esse avanço, a vida dos marinheiros era miserável, os soldos eram baixíssimos, a comida a bordo dos navios era servida podre e os atos considerados de indisciplina eram punidos com castigos corporais que incluíam chibatadas, como as que eram aplicadas nos escravos. Curiosamente a grande maioria dos marujos era negra.
A insatisfação vinha crescendo desde muito tempo e piorou quando duas tripulações completas foram enviadas à Inglaterra, a fim de conduzirem de volta ao Brasil os dois maiores navios da esquadra: o encouraçado Minas Gerais e o São Paulo.
Uma vez lá, os marinheiros tiveram oportunidade de comparar sua situação com a dos marinheiros ingleses e constatar a vida indigna que levavam, num país que se preparava para despontar como potência no cenário internacional.
Esboçava-se a revolta, tendo a frente o marinheiro João Cândido. Durante um período de preparação, formou-se um comitê revolucionário que tinha líderes nos encouraçados Minas Gerais, São Paulo e Deodoro. Marcara-se inicialmente a data da revolta para dez dias após a posse do presidente Hermes da Fonseca, que aconteceria em 15 de novembro de 1910.
Contudo, um fato grave ocorreu no dia 22 de novembro: o marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes, do Minas Gerais, por ter trazido cachaça para bordo, foi punido com a absurda quantidade de duzentas e cinqüenta chibatadas. Isso precipitou a revolta.
O toque de corneta das 22:00 seria o sinal para o levante. A bordo do Minas Gerais, maior navio da armada, Os clarins não tocaram silêncio, Tocaram combate.
O oficial Batista das Neves, ao retornar de um jantar oferecido em um navio francês, foi morto a tiros no convés. João Cândido ordenou um disparo de canhão para alertar a frota. O sinal foi imediatamente respondido pelo São Paulo e pelo cruzador Bahia e alguns minutos depois pelo Deodoro e por mais quatro embarcações menores fundeadas na baía da Guanabara. Estava deflagrada a revolta.
Foi enviada mensagem ao Presidente da República, onde se exigia o fim dos castigos corporais, a melhora das condições de vida a bordo e dos soldos, além de várias outras reivindicações, sob pena de bombardeamento da capital da república.
O governo, sem condições de reagir, capitulou e cinco dias depois o Congresso editou lei abolindo o castigo e anistiando os revoltosos. Diante disso, os amotinados depuseram armas e entregaram as embarcações. Estava encerrada a revolta.
Alguns dias depois, contudo, eclodiu uma revolta de fuzileiros navais na Ilha das Cobras e, dessa vez, o governo reagiu com violência, acusando inclusive João Cândido e os demais líderes da Revolta da Chibata como causadores da nova revolta.
Muitos foram presos em condições subumanas e acabaram morrendo no calabouço. João Cândido sobreviveu.
O episódio marca a primeira tomada de consciência na direção dos direitos humanos no Brasil. Sua importância histórica é enorme por simbolizar uma reação das classes baixas contra a dominação das classes abastadas. Apesar disso, as forças armadas sempre fizeram questão de ocultar a verdade e diminuir a importância histórica do acontecimento e, como a História é tradicionalmente escrita pelos vencedores, a revolta só não caiu em completo esquecimento devido à resistência intelectual de alguns, como João Bosco e Aldir Blanc que, na década de setenta fizeram a música O Mestre Sala dos Mares
João Cândido, que depois do episódio ficou conhecido como o Almirante Negro, foi perseguido ao longo de toda a sua vida, sem patente, sem aposentadoria, sem dinheiro, viveu até 1969, trabalhando como vendedor de peixe num entreposto de vendas no Rio de Janeiro. Somente no ano de 2008, durante o Governo Lula, foi editada lei pelo Congresso Nacional, concedendo anistia post mortem a ele e a todos os demais líderes e amotinados da Revolta da chibata.
(1) COELHO, Assis. Lima Barreto, um caminhante libertário. São Paulo. Baraúna, 2010.
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